O príncipe do reino estranho
O príncipe do reino estranho

No tempo em que as flores sorriam, havia uma princesa que estava em idade de casar. O rei, seu pai, conferenciou com a rainha sobre o assunto à mesa de jantar enorme e farta. A filha não costumava descer dos seus aposentos para as refeições, pois não queria engordar. Sempre que se aproximava a hora, Astromila, a sua criada particular, subia a alta torre do castelo com uma bandeja de prata cravejada de safiras, esmeraldas e rubis, onde se evidenciava meio copo de água e num prato de ouro maciço uma folha de alface com um fio de azeite. Dizia a criada para si própria, não fosse perder a cabeça, que nem os grilos comiam tão pouco. Mas era por este motivo que a princesa tinha tanto orgulho na sua cintura, que ela, com as suas próprias mãos finas e curtas, podia facilmente rodear. Parecia uma flor: a face sorridente e o cabelo comprido em caracóis dourados.
Dizia pois o rei à rainha enquanto comia metade de um pudim:
– O rei D. Fuas do Reino Estranho tem um filho mancebo. E se lhe propuséssemos o casamento com a nossa filha?
À rainha não lhe agradava muito a ideia.
– Se o filho for como o pai, não será bom nem para o nosso reino nem para a nossa filha. D. Fuas é o rei mais malvado da cristandade. E tem mau hálito.
– Então o que propõe a minha senhora e rainha? – perguntou o rei com falsa cortesia, farto das dúvidas da esposa, que vinham ao de cima sempre que era necessário decidir sobre o que quer que fosse da política doméstica e, consequentemente, do reino.
– Que se demande um príncipe garboso e educado, herdeiro de um reino pacífico, desenvolvido e rico.
– E quanto ao mau hálito?
– Contanto que cumpra os outros requisitos, isso será um defeito de pouca importância.
Ficaram, nos dias seguintes, de enviar emissários aos reinos vizinhos a procurar um príncipe disponível que fosse conveniente à formosura da princesa.
Uma tarde, saiu a princesa a dar um passeio com a sua criada. Levavam cada qual uma cestinha, onde guardavam as flores mais sorridentes que iam encontrando. Andavam neste divertimento, quando surgem dois jovens cavaleiros, um gentil e bonito, que denotava importância e fidalguia, e o outro menos garboso que, pelos modos e tratos, parecia seu criado. O mais gentil perguntou-lhes se aquele era o caminho para a cidade. A princesa ficou tão fascinada que lhe faltaram as palavras para responder. Teve de ser Astromila a dizer que iam no caminho certo, o que fez com que o cavaleiro perguntasse se a sua senhora era muda.
– Não – respondeu a criada com alguma graça. – Ela só está espantada com o tamanho da crina do seu cavalo.
– Então, bela donzela, certamente poderá dizer-me o seu nome para que este feliz encontro fique para sempre na minha memória – pediu ele voltando-se para a princesa.
– Eu sou a Belaflor.
O cavaleiro fez-lhe uma vénia de cima do seu corcel enquanto se apresentava:
– Eu sou o príncipe Gundesindo, do Reino Estranho, e este é Ildefredo, meu criado.
Estiveram ali a trocar palavras próprias do namoro e, porque a criada avisasse que se fazia tarde, despediram-se com um adeus de boca que quase foi um beijo. Seguiu o príncipe e o criado pelo caminho real em direcção à cidade e seguiu a princesa com a criada por um atalho para recuperar o tempo perdido.
Chegadas ao castelo, a princesa descobriu com tristeza que todas as flores que levava na cesta tinham perdido o sorriso. Os pais, ao jantar, ordenaram que ela descesse e se sentasse com eles à mesa. Enquanto a princesa comia a folha de alface, disseram-lhe que iam para velhos, não tinham filho varão que sucedesse no trono e por isso estava na hora de lhe arranjar noivo. Dentro de alguns dias, logo que os emissários aos reinos vizinhos regressassem, escolheriam o pretendente que mais lhe conviria.
A princesa quis saber se tinha ela própria alguma palavra a dizer quanto à escolha do seu futuro marido.
O pai calou-se, mas a mãe disse que, embora isso não fosse costume, que quem escolhia o noivo de uma princesa eram os pais, eles teriam em consideração a sua opinião, pois não queriam obrigá-la a casar com quem não gostasse.
– Pois então, quero anunciar-vos – disse ela em tom mais ou menos solene – que já escolhi aquele que será o meu marido e o meu rei.
A mãe ficou com o copo de água no ar e o pai, que no momento desmanchava à dentada uma perna de borrego, deixou a gordura sujar-lhe o bigode. A rainha poisou o copo sem beber e perguntou:
– E quem é ele?
– É o príncipe Gundesindo do Reino Estranho.
A mãe quase ficava histérica de tantos gritos que deu e ao pai quase lhe dava um enfarte devido à estridência dos mesmos gritos.
– Guardas! – chamou o rei depois de se recompor. – Encerrem a princesa na torre do castelo e que não saia de lá sem minha ordem.
Os guardas cumpriram de imediato a ordem.
No dia seguinte, o príncipe Gundesindo compareceu no castelo e pediu uma audiência com o rei. Este recebeu-o na sala do trono um pouco contrariado, mas, como era uma visita diplomática, tinha que engolir e calar. Na troca de cumprimentos, perguntou-lhe como estava D. Fuas, o pai. O príncipe disse-lhe que estava bastante velho e doente e que este o queria ver casado antes que Deus o levassem para o outro mundo. Correndo a notícia de que no Reino Florido havia uma princesa em idade de casar e que os pais procuravam noivo, D. Fuas decidira enviá-lo de embaixada a propor a união por matrimónio dos dois reinos.
O rei desviou um nadinha a coroa da cabeça, coçou onde mais lhe convinha e disse-lhe que ia ponderar no assunto. Voltasse ele ao castelo dentro de sete dias e lhe daria despacho.
O príncipe fez uma vénia e saiu às arrecuas, como era regra do protocolo.
Ficou hospedado por seis noites numa estalagem da cidade e todos os dias saía pelos bosques próximos à procura de Belaflor. Porque nunca a encontrou, começava a temer o dia que se aproximava para o rei lhe dar resposta, que ele desejava fosse negativa, pois decidira correr mundo até encontrar a donzela que lhe roubara o coração com uma só mirada. Não se queria casar com uma princesa que nunca vira.
Ildefredo, o criado, que nem sempre acompanhava o príncipe nas buscas tresloucadas e suspirosas pelos bosques, numa tarde que ficou pela cidade, deu de caras com a criada de Belaflor. Esta, que tinha ido comprar agulhas e linhas para os bordados da princesa, tentou escapar-se por entre a multidão que atravancava as ruas. Mas o criado foi sair-lhe numa rua mais à frente.
– Foges de mim? – perguntou-lhe com ar ofendido.
– Não é conveniente que alguém nos veja – respondeu-lhe olhando para todos os lados.
– Mas se anda na rua um ror de gente!
– Esperemos que ninguém me reconheça.
– E de que tens medo? De mim?
– De ti? Oh, não. Não tenho medo ti – disse sorrindo.
Ildefredo, muito galante, pois não lhe era indiferente o bom porte da criada, disse-lhe com alguma comoção:
– As minhas noites e os meus dias têm sido difíceis. Desde aquele dia no bosque que me não sais do pensamento. Precisava de te ver.
– Pois cá me tens – disse ela em tom de desafio, com as mãos nas ancas.
Como a resposta fosse desconcertante, o criado desviou o assunto da conversa:
– O príncipe, meu senhor, gostava de saber onde vive Belaflor, a tua senhora.
– Toda a gente sabe onde vive Belaflor.
– E onde isso é?
– No castelo, onde é que haveria de ser?
– No castelo? E que faz ela no castelo?
– Belaflor é a princesa.
O criado ficou sem fala.
– Diz ao teu príncipe que ela o espera, ansiosa. Mas que não demore.
Antes que Ildefredo pudesse reagir, Astromila tinha desaparecido na multidão.
Quando o príncipe regressou das suas buscas, o criado contou-lhe o que acontecera. Gundesindo ficou de tal forma entusiasmado que quis naquele momento ir ao castelo. Mas o criado, com sensatos conselhos, convenceu-o a esperar pela recepção no dia seguinte, onde o rei lhe daria resposta.
– E se ele disser que não?
– Se disser que não, raptamos a princesa – sugeriu o criado.
– Não podemos correr esse risco – respondeu o príncipe.
Enquanto eles conjecturavam o que poderia ou não acontecer e o que deveriam ou não fazer, o rei e a rainha discutiam mais uma vez à mesa do jantar o futuro da princesa. Por aqueles dias, todos os emissários, menos um, regressaram dos reinos vizinhos e não conseguiram encontrar um príncipe em idade de casar. Havia príncipes, e muitos. Mas, ou eram meninos de mama, ou demasiado imberbes.
O rei começava a convencer-se de que, face à escassez de pretendentes, talvez a melhor decisão a tomar fosse casar a filha com Gundesindo, herdeiro do Reino Estranho. Afinal, na audiência, não lhe pareceu que o rapaz tivesse a torpeza e a malvadez do pai. Mas a rainha não concordava. Entendia que deveriam esperar até que chegasse o último emissário. E só no caso de ele vir de mãos a abanar é que poderiam ponderar na remota possibilidade de darem a mão da filha a Gundesindo.
Na audiência do dia seguinte, a rainha fez questão de estar presente, ao lado do rei. Ouviram queixas, pendências e petições de uma dúzia de cortesãos, governadores e alcaides do reino e a tudo foi dado despacho conforme o bom senso do rei, a qualidade do peticionário e a importância do assunto. A audiência chegou ao fim e o príncipe Gundesindo não se fizera anunciar. O rei, que estava com fome, embora achasse um ultraje à sua dignidade a falta do príncipe a uma audiência marcada, ficou todavia satisfeito, pois considerava o assunto encerrado sem ter que decidir sobre ele.
A essa hora, porém, já Belaflor ia longe, bem agarrada às costas do príncipe, que guiava o cavalo pela floresta, à frente de Ildefredo, o criado, que levava agarrada a si Astromila. Com receio da resposta negativa do rei, Gundesindo decidira assaltar o castelo. Belaflor e Astromila já os esperavam. Com o pretexto de que tinham ordens do rei para acompanhar a princesa à sala do trono, ludibriaram os guardas e conseguiram escapar-se.
Casaram-se dez dias depois, na catedral do Reino Estranho. Os pais de Belaflor, quando souberam, não ficaram muito satisfeitos, mas acabaram por se adaptar às circunstâncias. Com a morte de D. Fuas, alguns meses mais tarde, Gundesindo tornou-se rei. Belaflor estava muito feliz, tanto mais que ficara grávida, e os piores receios dos pais não se realizaram. O príncipe não tinha o mau feitio nem o mau hálito de D. Fuas, embora cheirasse mal dos pés, como toda a gente.




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